Saúde

“Cavalo de Troia do bem”: cientistas buscam formas inovadoras para tratar a raiva
Composto foi usado para carregar os anticorpos da raiva e solta¡-los dentro das células infectadas, inibindo a aa§a£o do va­rus
Por Valéria Dias - 03/02/2020

Cachorros de rua. osFoto: Ceca­lia Bastos/USP

Estudo da Faculdade de Medicina Veterina¡ria e Zootecnia (FMVZ) da USP propaµe forma inovadora para tratar a raiva, doença negligenciada que, anualmente, mata mais de 60 mil pessoas no mundo, a grande maioria na áfrica e na Asia.

Os cientistas do Laborata³rio de Raiva da FMVZ usaram um composto de protea­nas osespanãcie de “cavalo de Troia do bem” ospara carregar os anticorpos contra o va­rus da raiva atédentro das células cerebrais de camundongos infectados. Os anticorpos conseguiram inibir a ação do va­rus de modo intracelular, impedindo a replicação e a infecção das outras células.

Presente de grego

O “cavalo de Troia” foi uma estratanãgia usada pelos gregos para vencer a Guerra de Troia, narrativa que mescla história e mitologia e que teria ocorrido entre os séculos 12 e 11 a.C. Soldados gregos teriam se escondido em uma grande esta¡tua de madeira, em forma de cavalo. Acreditando se tratar de um presente que simbolizava a rendição dos rivais, os troianos levaram a esta¡tua para dentro da cidade. Anoite, os soldados saa­ram da esta¡tua, abriram os portaµes de Troia e a cidade foi tomada pelos gregos, que venceram a guerra.

Nos tempos atuais, a expressão “cavalo de Troia” remete a  informa¡tica: éum tipo de va­rus que se camufla em um arquivo aparentemente inofensivo, mas que infecta o computador com um va­rus quando acessado.

Aqui, usamos a expressão “cavalo de Troia do bem” como uma analogia para descrever a ação do composto usado como vea­culo carreador de anticorpos da pesquisa da FMVZ.

Dos dez animais infectados que receberam o tratamento, sete sobreviveram sem nenhuma sequela neurola³gica e três morreram em decorraªncia da raiva. No grupo controle, a mortalidade foi de 90%. Esse grupo também recebeu anticorpos contra raiva, poranãm, sem o agente carreador. Isto sugere que os anticorpos precisam entrar na canãlula para inibir o va­rus.

“Sa£o resultados iniciais, ainda épreciso testar em outros modelos e ampliar o número de animais submetidos a tratamento para poder confirmar, efetivamente, que esse tratamento épromissor”, pondera o bia³logo Washington Carlos Agostinho, autor da dissertação de mestrado que investigou o tema. A orientação do trabalho foi do professor Paulo Eduardo Branda£o, coordenador do Laborata³rio de Raiva. Segundo Branda£o e Washington, de todas as doenças negligenciadas que existem atualmente no mundo, a raiva éa mais negligenciada entre elas. A doença éfatal em praticamente 100% dos casos. Atéhoje, foram relatados somente cinco casos de pessoas que conseguiram sobreviver após apresentarem os sintomas da doena§a: todas ficaram com sequelas, como paralisia e dificuldades de fala.

Ultrapassando barreiras

A proposta da pesquisa de Agostinho, Transfecção de anticorpos como terapia antiviral para a raiva, foi desenvolver um tratamento para quando os sintomas da doença já estãoinstalados. Em relatos de casos humanos háocorraªncia de mal-estar, tontura, na¡useas e va´mitos, dores musculares e de cabea§a, dificuldade em falar e engolir, espasmos musculares e confusão mental. Ocorre aumento da temperatura, hipersensibilidade a rua­dos e a  luz, além de hidrofobia osaversão a  águae nome pelo qual a doença também éconhecida.

Transmitido pela saliva de mama­feros infectados, o va­rus da raiva, do gaªnero Lyssavirus, penetra na pele atravanãs de escoriações causadas pela mordedura ou arranhadura do animal. O va­rus se move ao longo do sistema nervoso perifanãrico, uma rede de neura´nios que se ramificam desde as extremidades, como dedos e panãs, em direção a  medula espinhal. Assim que o va­rus da raiva chega aos ga¢nglios da raiz dorsal e medula espinhal, segue em direção ao sistema nervoso central e depois se espalha para o cérebro. Quando os sintomas ocorrem éporque o va­rus já percorreu o sistema nervoso perifanãrico e chegou ao sistema nervoso central. Neste esta¡gio, hámuito pouco a fazer.

Ciclo de transmissão do va­rus da raiva osInfografia: Beatriz Abdalla

Um dos grandes problemas no tratamento da doena§a, segundo o pesquisador, éfazer os fa¡rmacos ultrapassarem a barreira hematoencefa¡lica, uma proteção natural do corpo, espanãcie de corda£o de isolamento que impede que va­rus, fungos, bactanãrias e outros corpos estranhos osentre eles, os anticorpos contra o va­rus da raiva oscheguem ao sistema nervoso central. Foi então que os pesquisadores decidiram agir, exatamente, neste local.

“Cavalo de Troia do bem”

Washington explica que o lado externo das células apresenta algumas protea­nas aderidas que conferem a elas uma carga elanãtrica negativa. Já os anticorpos também apresentam carga elanãtrica negativa. Aqui vale lembrar das aulas de Fa­sica, em especial das que tratam de eletricidade: cargas elanãtricas de sinais iguais se repelem, cargas elanãtricas com sinais diferentes se atraem.

E éaa­ que entra o “cavalo de Troia do bem”. Trata-se de um composto lipa­dico catia´nico que apresenta carga positiva. Esse composto foi usado para englobar o anticorpo do va­rus da raiva. a‰ como se o composto fosse uma mochila, e o anticorpo, o conteaºdo dentro dela. Dentro do composto, o anticorpo foi empacotado pela carga positiva.

Como as células tem carga negativa e o anticorpo dentro do composto passou a ter carga positiva, quando os pesquisadores inocularam o “cavalo de Troia do bem” dentro do encanãfalo dos camundongos infectados, canãlula e anticorpo se atraa­ram. O anticorpo entrou na canãlula (processo chamado de transfecção), onde conseguiu atacar o va­rus da raiva, impedindo sua replicação e a infecção de outras células.


O composto foi  misturado com uma solução de anticorpos. Ao ser inoculado no
cérebro dos animais, o complexo pode ou se fundir diretamente com a membrana
plasma¡tica (que delimita as células) e entregar o anticorpo diretamente dentro da
canãlula (1), ou pode ser internalizado por ela e depois se fundir com o endossomo
(uma espanãcie de compartimento responsável pelo transporte e digestãodepartículas celulares), liberando o anticorpo no citoplasma (fluido existente dentro das células) 
(2). O anticorpo fica livre para neutralizar o va­rus (3) –
Infografia adaptada de Manual Bioporter Genlantis

“A pesquisa demonstra que épossí­vel utilizar anticorpos produzidos contra o va­rus da raiva de um modo que, inovadoramente, faz esses anticorpos entrarem nas células e combaterem o va­rus”, destaca o orientador do trabalho, o professor Paulo Eduardo Branda£o.

Protocolo de Milwaukee / Protocolo do Recife

Desde a descoberta da vacina da raiva, em 1885, na Frana§a, pelo cientista Louis Pasteur, atéos dias atuais, foram relatados, em todo o mundo, apenas cinco sobreviventes: dois nos Estados Unidos (2004 e 2017); um na Cola´mbia (2008); e dois no Brasil (2008, em Pernambuco, e 2019, no Amazonas). Mas todos ficaram com sequelas. Essas pessoas foram tratadas com o Protocolo de Milwaukee, que consiste em induzir o estado de coma no paciente, seguido da aplicação de fa¡rmacos antivirais. No Brasil, ele foi adaptado e recebeu o nome de Protocolo do Recife.

Prevenção e tratamento

A principal forma de combate a  raiva éa prevenção por meio da vacinação antirra¡bica de ca£es e gatos. Entretanto, o va­rus também pode ser transmitido por animais silvestres infectados, principalmente morcegos.

O tratamento consiste na aplicação do soro e da vacina antirra¡bica. “A vacina éconstitua­da por partes do va­rus, a qual ira¡ induzir a produção de anticorpos. Essa produção de anticorpos pela resposta da vacina leva dez dias atéque a resposta imunola³gica do indiva­duo possa comea§ar a combater a infecção”, descreve o bia³logo Washington Carlos Agostinho.

“Por isso, em caso de acidentes suspeitos, são efetuados os dois procedimentos, paralelamente. Enquanto a vacina ativa o sistema imunológico, o soro faz essa cobertura contra o va­rus atéque o sistema imunológico esteja apto”, conta.

Agora, os pesquisadores estãobuscando publicar os achados em alguma revista cienta­fica. Segundo o professor Branda£o, os pra³ximos passos do projeto são realizar testes com mais doses desse tratamento e com outros tipos de va­rus da raiva.

No Brasil, os casos de raiva são espora¡dicos. Segundo dados do Ministanãrio da Saúde, entre 2010 a 2017, foram registrados 25 casos de raiva humana. Em 2014, não houve registros. Dos 25 casos, nove foram transmitidos por ca£es, oito por morcegos, quatro por primatas não humanos, três por felinos e, em um deles, não foi possí­vel identificar o animal agressor. Quanto a s mortes mundiais por raiva humana, especialistas da área acreditam que o número deve ultrapassar as 60 mil mortes anuais, devido a  subnotificação.

 

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